quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

A FUNIVALE e o Vale do Jequitinhonha


FUNIVALE – Uma UNIVERSIDADE LIVRE, EXPERIMENTAL e COMUNITARIA
no Vale do Jequitinhonha – Minas Gerais – Brasil



 texto escrito por:

Sandra Viviane de Moura (Educadora Socioambiental, São Gonçalo, MG),


Martin Wilhelm Kuhne (Professor, São Gonçalo do Rio das Pedras, MG ),


                                                                                          Luís Carlos Mendes Santiago( Escritor, Pedra Azul, MG ),


Evandro Sathler (Advogado socioambientalista, Niterói, RJ ),


                                          Carlos Humberto Mendes Gothchalk ( Teólogo, Conferencista, Escritor, São Paulo, SP),


A foz do Rio Jequitinhonha está situada em Belmonte no estado da Bahia à cerca de 50 km do local onde, no ano de 1500, o Brasil foi “descoberto” pelos Portugueses. Poucas décadas depois toda essa costa do descobrimento passou a integrar a Capitania de Porto Seguro, onde foram instituídas escolas jesuítas para catequizar os povos nativos (denominados índios) da nação Tupiniquim, além de plantações de cana-de-açúcar e engenhos para produzir o açúcar. Porém, esse primeiro surto de progresso pouco durou, pois os índios Aimorés conseguiram expulsar os Portugueses da região.
Já no início do século XVIII, a região da foz do Jequitinhonha voltou a ser povoada por súditos do rei português, que submeteram os moradores da foz do Rio Jequitinhonha, índios  da nação Camacã, à “civilização”. O rio não tinha ainda o nome de Jequitinhonha, era conhecido como Rio Grande, ou Rio Paticha, no falar indígena. O aldeamento situado na sua foz tinha o nome de Nossa Senhora do Carmo, ou Nossa Senhora do Carmo do Paticha. 
Enquanto  isso acontecia na foz do rio, nas suas nascentes, situadas a mais mil quilômetros dali, os Portugueses    exploravam ouro desde os primeiros anos do século XVIII e diamantes a partir da década de 1720, porém não sabiam que o Rio Jequitinhonha era o mesmo Rio Grande de Belmonte. A mineração determinou uma ordem social totalmente diferente daquela existente na foz. Os indígenas foram sumariamente expulsos , escravizados,  assimilados à sociedade portuguesa ou exterminados.
Ao longo dos séculos XVII E XIX centenas de milhares de escravos de origem africana foram “importados” para executar os trabalhos pesados da mineração.   Os moradores que viviam nas proximidades dos rios e córregos onde se exploravam diamantes tiveram que abandonar suas terras e moradias. Todos que entravam ou saíam do Distrito Diamantino eram rigorosamente revistados. 
Em 1780 o governo português criou uma empresa estatal para explorar os diamantes na região, a Real Extração. Nesse novo período, as leis restritivas específicas para aquela região se tornaram ainda mais autoritárias.
Em 1805, uma expedição saiu de Belmonte subindo o Rio Grande e descobriu que era  ele o mesmo Rio Jequitinhonha da região diamantina. No ano seguinte, 1806, a família real portuguesa, sob a ameaça das tropas de Napoleão Bonaparte, mudou-se para o Brasil. Um grande número de nobres e cortesãos acompanhou a corte portuguesa e “precisava” agora de terras para serem “proprietários”.
Os Aimorés da região de Porto Seguro, na Bahia, agora conhecidos com a denominação de Botocudos, tinham afluído para o Leste de Minas. Portanto, era necessário “civilizá-los” ou exterminá-los para que os Portugueses pudessem tomar posse das terras. Foi então declarada Guerra contra o Gentio Botocudo, em 1808. Para essa guerra foram criados vários quartéis e divisões militares, nos estados da Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo. Porém os soldados portugueses se mostravam inoperantes contra as táticas de guerrilha dos Botocudos. O exército português passou, então, a utilizar os índios Maxacalis, Pataxós, Camacãs e Tupiniquins na guerra de extermínio contra os Botocudos. Foram esses índios de diferentes nações, inclusive Botocudos “pacificados”, os moradores das primeiras cidades do médio Jequitinhonha.
Uma vez pacificados os Botocudos, os colonizadores da região se voltaram contra os índios das demais nações e também contra os escravos africanos fugidos que viviam nos rincões mais afastados e contra os pequenos posseiros. Essa nova ocupação da região  se deu com muita violência, pois os grandes proprietários de terras tomavam as pequenas fazendas de descendentes de índios e de africanos que haviam se estabelecido na região há  gerações.
Massacres de indígenas e expulsões de posseiros se repetem ao longo de todo o período. Na década de 1970, por exemplo, milhares de pequenos proprietários do Alto Jequitinhonha, que não possuíam títulos das terras que ocupavam há gerações, foram expulsos de suas terras pelo governo de Minas Gerais, para que grande empresas plantassem eucalipto. Já no século XXI, comunidades inteiras foram “transferidas” para outras terras para dar lugar a construção de uma grande barragem hidrelétrica.
Paralelamente a essa guerra surda, existe um processo de interação entre as diferentes etnias da região. Esse processo de convivência entre as etnias existe desde os tempos coloniais, quando os Portugueses se uniam às escravas de origem africana ou indígena, que se tornavam, assim, prestigiosas senhoras. O caso mais famoso é o da escrava Chica da Silva, que se tornou esposa do contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira, embora nunca tenha oficializado a união. Sua vida tem sido retratada em romances, filme de longa metragem, série de televisão e trabalhos acadêmicos, que fazem dela a escrava mais conhecida na História do Brasil. Mas Chica da Silva é apenas um exemplo deste processo bem mais amplo de miscigenação de etnias e enlaces culturais.
No Vale do Jequitinhonha, cada cidade e cada comunidade promove, anualmente, as festas do Rosário, do Divino com batuques, danças e rezas que lembram as coroações e cerimônias realizadas pelos povos da sua formação histórica. 
A riqueza e a vitalidade cultural da região surpreendem e fascinam pela originalidade,  diversidade e criatividade que se manifestam na música, no artesanato, na cozinha, na religiosidade e na própria linguagem da população. Porém, a riqueza mineral, a variedade de ecossistemas, a diversidade e as peculiaridades culturais têm valido pouco aos moradores do Vale do Jequitinhonha, que possui um dos menores Índices de Desenvolvimento Humano do Brasil e continua dependente de outras regiões para alimentar seu povo. Ao longo das últimas décadas, muitos projetos se propuseram a modificar esse quadro, partindo dos governantes, universidades e organizações não-governamentais (ONGs). Entretanto a imensa maioria dessas propostas não teve continuidade, por não serem construídas a partir e junto com as comunidades.
Foi este contexto complexo, diferenciado e, em muitos aspectos, paradoxal que um grupo de estudantes da FAFIDIA* - sob a liderança do Prof. Martin Kuhne - criou a FUNIVALE em 1989. Sendo, esta criação, resultado das reflexões e dos questionamentos num seminário sobre as obras de Baruch Espinosa, do jovem Karl Marx, de Albert Schweitzer, Josué de Castro, Erich Fromm , Paulo Freire,  Hans Jonas e, mais recentemente, de Ivan Illich, E.F. Schumacher, Leopold Kohr, Gustavo Esteva, Leonardo Boff e Dom Mauro Morelli.  
Com seu nome programático de uma UNIVERSIDADE, LIVRE, EXPERIMENTAL E COMUNITARIA**, uma universidade “com os pés no chão e a cabeça nas nuvens”, uma universidade que não se prende à escolaridade formal para dar  liberdade aos discentes, pensou-se  uma universidade como espaço de encontro, diálogo e busca de soluções a partir do reconhecimento da complementaridade do saber engenhoso e habilidoso popular e do conhecimento científico- formal- acadêmico, aberta para novos caminhos e experimentações, uma universidade que ensine e exercite o pensar crítico, auto- critico, criativo e cuidante, uma universidade construída a partir do esforço coletivo que contribui para a melhoria da vida das comunidades e seus integrantes, uma universidade na qual cooperam mentes, corações e braços construindo,  produzindo e cuidando da vida. O processo educativo que a FUNIVALE fomenta tem como compromisso a emancipação das pessoas e comunidades, num processo aberto em permanente transformação e construção, onde os aprendizes e educadores se confundem, podem e devem inverter suas funções em todos os contatos. A renúncia ao privilégio sócio-intelectual  se exercita, em todos os momentos, para neutralizar as diferenças entre o aprendiz e o educador.
Para transformar o que pareceu, para muitos, uma utopia num sonho realizável, o grupo recorreu às boas experiências de vida comunitária no próprio Vale e outras feitas durante a II Guerra Mundial na Bildungsstaette St. Bonifatius em Elkeringhausen. Com a Escola Superior de Pedagogia de Weingarten, também na Alemanha, conquistou-se pelo Professor Dr. Wolfgang Marcus um grande número de simpatizantes  e apoiadores.
A partir de sua formalização enquanto entidade e de seu reconhecimento como de utilidade pública pelo Estado de Minas Gerais, muitos projetos foram concebidos, vários realizados, outros guardados para o futuro. No decorrer dos anos descobrimos que nossa universidade é processo e não uma instituição com prédios, um corpo docente fixo, diplomas acadêmicos etc. Nossa experimentação não se faz em um laboratório com cobaias e tubos de ensaio, sim, em um “Campus de 80.000 km2” com mais de 80 municípios e cerca de 1.000.000 habitantes onde os indivíduos e a coletividade são, ao mesmo tempo, os sujeitos e os objetos da sua experimentação.
Entre estes projetos destacamos, como os primeiros, o “TERRA MAE” e o “BERÇO DA FLORA”. O primeiro se inspirou no problema relacionado ao uso dos recursos naturais para a produção de gêneros alimentícios e tem por objetivo básico o incentivo à produção de hortifrutigranjeiros através de técnicas orgânicas e permaculturais que respeitem o meio ambiente. Sua primeira amostra está na sede da FUNIVALE, no distrito de São Gonçalo do Rio das Pedras (Serro – MG) onde funciona uma horta modelo de cultivo orgânico, sem utilização de adubos ou defensivos químicos. Atualmente 12 famílias trabalham e produzem para sua subsistência, enriquecendo a sua tradicional maneira de se alimentarem e oferecendo o excedente como fonte de uma renda extra. Outra experiência na comunidade rural de Boa Vista de Lajes onde 50 famílias têm suas hortas orgânicas individuais para consumo próprio e comercialização ou troca solidária do excedente.
Neste projeto está previsto o trabalho de educação para o uso sustentável dos recursos naturais e para outras formas de aproveitamento das potencialidades locais para produção de complementos alimentares  são ações cotidianas do nosso trabalho junto às comunidades. Para viabilizar minimamente que as ações planejadas vinguem tornou-se muito importante  as parcerias com órgãos municipais, estaduais, federais e do terceiro setor, na busca de soluções , tanto para realizar o trabalho educativo quanto para financiamento de pequenos projetos comunitários.
O Projeto BERÇO DA FLORA ataca o problema da supressão da flora, causado pelo extrativismo mineral  e o desmatamento causado por várias outras atividades. Este projeto objetiva a produção de essências da flora nativa destinadas ao replantio e recuperação de áreas degradadas e funciona agregado, física e metodologicamente, à estrutura do Projeto TERRA MAE.  Estão previstas atividades de educação ambiental junto a pequenos grupos de diferentes faixas etárias para estudo da flora local, para a produção de material didático – pedagógico próprio. A experiência dos últimos dois anos com a formação de crianças e adolescentes em botânica básica, com coletivos de jovens, com lideranças comunitárias e futuramente em noções práticas de arqueologia possibilita a descoberta de novas vocações e a compreensão da natureza e história local e regional. Enfim, atividades que possibilitem que as pessoas possam conhecer seu mundo e, assim, assumir sua responsabilidade de cuidados com o ambiente.
Outras iniciativas que comprovam que a nossa atuação está preocupada não somente com a sustentabilidade, mas com o desenvolvimento dos indivíduos são os encontros, oficinas, festivais que são realizados com o apoio da FUNIVALE.
A missão da FUNIVALE, que não se limita a projetos, segue procurando descobrir potencialidades naturais e sociais, pela utilização de  tecnologias inovadoras, mas menos consumistas e o aprimoramento de habilidades individuais e coletivas. Nossa grande busca, no entanto, é provocar a reflexão sobre a ação. A primeira sendo um hábito entre intelectuais, estudiosos, estudantes e acadêmicos e a última sendo hábito entre o agricultor, a dona de casa ou garimpeiro. Encontrar o ponto que possibilite o diálogo entre quem vive refletindo e quem vive executando é nosso exercício constante considerando a dinâmica natural da vida em evolução.
Na FUNIVALE estamos refletindo sobre a nossa presença nos pequenos lugarejos do Vale do Jequitinhonha, pois nos apresentamos como uma das alternativas para que pessoas que não têm nenhuma perspectiva de formação possam desenvolver suas habilidades, suas potencialidades em busca de uma vida mais digna. Não queremos que as comunidades sintam o peso de nossa presença nem de nossa ausência. Procuramos ajudar que os indivíduos e comunidades busquem e criem condições para seu processo de emancipação sócio – cultural e político- econômico.
As experiências dos 19 anos são intensas e imensuráveis do ponto de vista quantitativo e qualitativo. Não há como medir a transformação das e nas pessoas, mas essa transformação é perceptível. As comunidades e suas lideranças estão observando a realidade por outro ângulo, as crianças e adolescentes estão sendo incentivados a questionar o mundo e seu papel nele e um número crescente de pessoas busca uma relação mais respeitosa com a natureza.
Por outro lado, a FUNIVALE ainda não alcançou os objetivos que inspiraram sua criação. A real dimensão da sua proposta não foi visualizada na época de sua criação, pois as discussões acerca de temas como desenvolvimento sustentável, diversidade étnica e cultural ainda não eram correntes. Estes e mais  temas são foco de discussões nos seminários e encontros regionais. Em 19 anos, inúmeros  outros problemas emergiram agravados pelo neoliberalismo e a globalização. Mas, nem por isso, a chama da FUNIVALE apagou-se. Quanto maior o grau de dificuldade maior é a força de luta no enfrentamento das questões. Considerando, ainda, as limitações na gestão da entidade para alcance de nossos objetivos existem questões que não foram contornadas e carecem  de solução. Com prioridade esta a implementação de uma equipe técnica e profissional capacitada para alavancar os projetos em andamento e poder fazer a gestão da entidade e deflagrar  tantos outros projetos incubados. Para tanto são necessários recursos financeiros que podem ser investidos por apadrinhamento individual ou grupos de parceria solidária.
As dificuldades financeiras vividas pela FUNIVALE refletem os problemas econômicos enfrentados diariamente pela população do Vale do Jequitinhonha e estes problemas impedem que a própria população possa assumir financeiramente entidades como a nossa. Não podemos contar com ajudas do poder público para nos manter. Por isso são tão necessárias as ajudas financeiras das pessoas e entidades de países em melhores condições. Em nossas experiências sempre mencionamos o quanto a ajuda financeira solidária de ONG’s alemãs, austríacas e italianas e da undação brasileira VITAE que possibilitou a compra das terras para a horta e a construção do Prédio Paulo Freire significa para nós décadas depois. O investimento aconteceu e, a partir dele, continuamos iniciar ou ampliar nossas atividades e ações. Quando solicitamos ajuda financeira para uma atividade, estamos buscando condições para iniciar novos processos de transformação de uma realidade que nos incomoda e dificulta nossa   luta contra sua histórica injustiça. Quando não conseguimos estes recursos financeiros, o iniciar dos processos é retardatário e a lamentável conseqüência é observada nas comunidades onde ainda não pudemos oferecer nossas mãos. 
Outro grande desafio é lidar com a ação dominadora, exploradora e excludente do poder econômico junto à população, numa ação simultaneamente monstruosa e sutil, presente, inclusive, nos gabinetes de gestores de órgãos públicos que criam e recriam programas e projetos com objetivos imediatistas e assistencialistas. E também nas organizações civis que ainda praticam a “lei da compensação” trabalhando não para transformar as pessoas, mas para manterem a si mesmas e à ordem. Tentando influenciar a construção de um novo modelo de reflexão onde o indivíduo seja princípio, meio e fim das ações participamos de inúmeras comissões, fóruns, conselhos, seminários, reuniões e projetos, formando redes de interesses junto com outras entidades, apoiando, com nossa presença, as iniciativas de outros na melhoria das condições de vida na região. A todo instante tentando  diariamente chamar a atenção das três esferas do poder público para uma nova leitura da realidade. Desta forma são fortalecidas as condições para que nossa população possa permanecer em sua terra natal com dignidade e boas perspectivas.
Escrever sobre as experiências e perspectivas de um empreendimento como a FUNIVALE Ela é, sobretudo, uma oportunidade de expressar a grande significância de seu papel numa região como nosso Vale do Jequitinhonha. Com ela como instrumento da população queremos construir caminhos inversos onde possamos agir, tentar, errar, acertar, questionar, renovar os vínculos comunitários de todas as idades, cultivar afetos a tudo que faz bem e constrói a vida no Vale, buscar e descobrir que precisamos começar de novo... com um compromisso único conosco e, ao mesmo tempo, com toda a humanidade.

-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
* FAFIDIA (Faculdade de Filosofia de Diamantina) e da FAFEOD  (Faculdade Federal de Odontologia)  naquela época as  únicas instituições de ensino superior no Vale do Jequitinhonha.
 **Desde o inicio de sua história e que trabalhamos coletivamente através de reflexão, questionamento e formulação das idéias e sua elaboração  em criativas “tempestades cerebrais”.
Maiores informações:
funivale.blogspot.com
Rua Campo das Flores, 96, São Gonçalo do Rio das Pedras, Serro, Minas Gerais, Brasil, CEP 39 153 000
Maiores informações sobre o Vale do Jequitinhonha:



Nenhum comentário: